30 de maio de 2012

Cientismo e eclosão da ética cosmocêntrica


Para Alvin Toffler, a segunda vaga de mudança é o cenário de apogeu da cultura cientifico-tecnológica e, com efeito, é neste período que se desenvolve o cientismo. 

O cientismo é o culto da superioridade ciência.
Esta, antidogmática por definição, fornece explicações das causas dos fenómenos que são dogmaticamente aceites pelo cientismo (oh, the irony!), pois este mito vê o conhecimento científico como um saber autónomo (independente de pressões políticas, sociais, religiosas) e rigoroso no seu método (só são consideradas ciências as áreas que quantificam o mundo e o recriam em experiências, pelo que as ciências da natureza são o cúmulo da cientificidade) que constitui a única forma lógica de representação da realidade. Para os adeptos do cientismo, o objectivo das ciências de prever (porque, «nas mesmas condições, as mesmas causas produzem os mesmos efeitos») e controlar os fenómenos naturais é o único método de garantir o bem-estar do Homem e o progresso sociocultural das civilizações. O estatuto de quase religião da ciência confere-lhe, e às suas descobertas, poder sobre o Homem, que se traduz num domínio dos detentores das novas tecnologias produzidas pela ciência  sobre os cidadãos comuns.

Com o desenvolvimento da ciência, apoiada pelo cientismo, esta tornou-se uma forma de poder.
A importância crescente do conhecimento científico, cimentada pela necessidade que este gera, nas populações, de novo progresso (diz-se, por isso, que o desenvolvimento tecnológico se estimula a si mesmo: a criação de gadgets impele as pessoas a adquirirem-nos, acabando estas por desejar adquirir outros mais avant-garde e, desse modo, incitar os técnicos a gerar novas invenções), torna-o vulnerável à política que, cada vez mais, procura intervir nas investigações levadas a cabo pelos cientistas e orientá-las, não no sentido da verdade, mas no mais proveitoso para o político.

O uso eticamente incorrecto da tecnologia faz ruir o cientismo e aponta para a necessidade de assumir responsabilidades éticas.
O desenvolvimento de investigações científicas permitiu concluir que, contrariamente ao que o cientismo fazia veicular, as leis enunciadas pela ciência não são verdades absolutas mas conceitos revisíveis, como estudámos anteriormente. Todavia, é no século XX, com as duas guerras mundiais e graças ao fabrico de armas com grande potência (como, por exemplo, a bomba atómica), que o cientismo, sob o peso da responsabilidade ética associada ao uso bélico da tecnologia, rui: de facto, a ciência e tecnologia não são necessariamente um método de obtenção da felicidade, podendo, até, apresentar alguns aspectos negativos associados ao seu uso. Ao serviço da tecnociência, a ética desenvolve-se com um carácter cosmocêntrico, isto é, centrada na preservação do cosmos (ver ética de Jonas), por oposição aos princípios éticos anteriores, pensados em função do Homem e dos seus interesses (= ética antropocêntrica).

As vagas de mudança de Toffler

Nos países ocidentais, devido à industrialização, assente em processos científico-tecnológicos, a ciência (conhecimento metódico e rigoroso das leis que regem os fenómenos naturais) e a tecnologia (conjunto dos equipamentos e utensílios criados pelo Homem) assumem um papel preponderante na vida das comunidades, dizendo-se, por isso, que vigora, nesses locais, uma cultura cientifico-tecnológica. Todavia, nem sempre este foi o caso. De facto, ao longo da história da Humanidade, o Homem atravessou vários períodos de desenvolvimento. Alvin Toffler, sociólogo e jornalista, distinguiu, por isso, 3 «vagas de mudança». 

1. Primeira vaga de mudança: sedentarização.
O primeiro ponto de viragem foi a sedentarização do Homem nómada, uma vez que possibilitou o crescimento de grandes comunidades e civilizações, dando início a um verdadeiro desenvolvimento intelectual e tecnológico das populações.

2. Segunda vaga de mudança: industrialização.
Mais tarde, no século XIX, com a Revolução Industrial, o mundo ocidental a segunda vaga de mudança, que corresponde à invenção da máquina que, visto produzir quantidades massivas de produtos idênticos, deu azo a fenómenos de estandardização/padronização (não só dos produtos comerciais, mas também das medidas, dos testes, etc. e, a nível global, das populações neste estádio de evolução). Devido a questões energéticas, as pessoas concentram-se em redor das fábricas e constroem grandes edifícios para albergar o seu número crescente de indivíduos (culto do grande), formando grandes comunidades que são organizadas e funcionam como os mecanismos de um grande aparelho mecânico: cada pessoa especializa-se numa tarefa e sincroniza-se com as restantes para fazer mover as engrenagens do progresso tecnológico e produção de artigos de interesse monetário. Para Alvin Toffler, este é o cenário de apogeu da cultura cientifico-tecnológica.

3. Terceira vaga de mudança.
Com a terceira vaga de mudança, a arte, a educação, as finanças, os negócios e a produção são alteradas pelo uso dos computadores que se tornam, além disso, veículos de transmissão de informação. A afluência desta é regulada pelos indivíduos, que podem escolher as suas preferências em relação às notícias que recebem e passam, também, a realizar somente actividades de que desfrute, porque a sua fonte de rendimento é um trabalho desempenhado pelo seu computador, desenvolvido graças às novas áreas científicas que surgem (destaca-se a robótica), procurando, mais do que a produção em massa, a produção única e criativa.

O método científico

Como foi explicado anteriormente, o método científico é um sistema rigoroso e objectivo de obter informação acerca dos fenómenos naturais.

1. Formulação do problema e da hipótese explicativa.
O método científico inicia-se através da observação de uma situação que não pode ser explicada à luz de teorias científicas anteriores, o cientista começa por formular o problema, isto é, definir o aspecto que não é contemplado pela lei acerca do fenómeno natural em análise. A procura da solução deste dilema leva à colocação de várias hipóteses explicativas, enunciados que traduzem possíveis causas para os factos observados, seleccionadas racionalmente pela razoabilidade/plausibilidade da sua adequação ao problema em questão e por parecerem explicá-lo na sua totalidade. Uma vez que a ciência é um saber empírico e, por isso, baseado na experiência, estas hipóteses são comprovadas ou contrariadas através de observações directas ou de simulações (experiência) do fenómeno, pelo que devem, também, ser verificáveis. 

2. Verificação experimental da validade da hipótese explicativa.
Durante este passo do método científico, é necessário definir variáveis (é sobre estas que recairão as conclusões) e constantes e, a partir da manipulação repetida das primeiras (para minimizar os erros experimentais, os procedimentos devem ser realizados diversas vezes), registar dados relevantes acerca da interacção destas: é o modo como se articulam as variáveis em estudo que apoiará ou destruirá a hipótese assumida pelo cientista. 

3. Invalidação da hipótese ou validação da mesma sob a forma de lei.
Quando as hipóteses são invalidadas pela experimentação, o cientista necessita de formular outra suposição. Todavia, quanto essa proposição é apoiada pelos dados experimentais, pode concluir-se que é verdadeira e reformular-se sob a forma de uma lei científica, um enunciado geral que explica o problema e, sendo matematizável, pode ser traduzido pela fórmula que relaciona as variáveis (ou conceitos operativos) que no fenómeno intervêm.

Senso comum e ciência

Os conhecimentos de que dispomos provêm de duas fontes: senso comum, cuja construção se faz a partir dos sistemas de crenças, tradições e saberes de uma cultura, e ciência, que é construída com base num método científico definido.

O conhecimento vulgar e o facto bruto são dados pelas circunstâncias.
Na sua rotina diária, o ser humano entra em contacto com numerosos situações e objectos concretos e, intuitiva e aleatoriamente, devido somente às circunstâncias, através da percepção sensorial directa, espontânea e imediata, adquire sobre eles um conhecimento superficial que, baseando-se somente numa observação sem análise, é acrítico mas dogmático (o que se vê é tomado incondicionalmente por verdadeiro), estando, por isso, na génese de muitos preconceitos. Carecendo de rigor, organização e objectividade (o modo como são percepcionados os objectos é subjectivo pois é frequentemente influenciado por caracteres socioculturais inerentes ao meio em que o observador se encontra imerso), os métodos por que se obtém o conhecimento vulgar são considerados assistemáticos e, por esse motivo, resultam na aquisição de dados heterogéneos e, muitas vezes, porque a observação sumária dos fenómenos naturais pode resultar na formação de sistemas de crenças infundamentadas e incoerentes entre si, contraditórios. É, na verdade, o conjunto muito diversificado destes factos brutos assimilados por uma população que, estando formulados de forma qualitativa (da observação podem apenas extrair-se descrições breves dos objectos, baseadas nas sensações tácteis, visuais, olfactivas, etc. que estes provocam) e sendo aplicáveis apenas aos casos particulares e concretos a que se referem, que constitui o saber empírico (isto é, resultante da percepção sensorial) e cumulativo que é conhecimento vulgar ou senso comum.

O conhecimento e os factos científicos são construídos.
Embora o conhecimento vulgar seja necessário ao ser humano, permitindo-o aperceber-se da utilidade prática dos organismos e objectos que o rodeiam, é, por vezes, insuficiente: devido à racionalidade inerente à estrutura intelectual do Homem, este tem uma grande necessidade de compreender os fenómenos naturais que o rodeiam como um todo articulado (recorde-se que o senso comum apenas informa quanto ao que sucede em casos específicos particulares), não só para satisfazer a sua curiosidade mas também por desejar garantir a sua subsistência aprendendo a prever e controlar os «caprichos» da Natureza. Estes objectivos só podem ser alcançados através do desenvolvimento da ciência e, portanto, de métodos específicos para a obtenção de informação que analisam e avaliam quantitativamente, de forma rigorosa e objectiva (isto é, autónoma em relação a preconceitos e outras condicionantes sociológicas, linguísticas e culturais, contrariamente ao que sucede com o conhecimento vulgar), o mundo natural e as experiências que o simulam. Analisando-se em profundidade os objectos de estudo, é gerado um conhecimento científico organizado sistematicamente que se submete aos mesmos, sendo, por isso, empírico e positivo (isto é, estando em concordância experimentalmente provada com os factos), e que se traduz em leis (enunciados gerais e, por isso, abstractos) que, relacionando racionalmente conceitos operativos básicos (ou factos científicos, que são os building blocks deste saber) construídos a supramencionada quantificação dos fenómenos naturais, unificam o conjunto dos dados em que se baseiam, tornando o saber científico um saber homogéneo. Devido ao seu cariz profundamente racional e à sua recusa em aceitar ser modelado por tradições e crenças, o conhecimento científico é, pois, autónomo e incita ao desenvolvimento de uma mentalidade crítica mas aberta e antidogmática, pelo que preza a intersubjectividade (concordância da comunidade científica e das várias áreas que a ciência abrange em relação a uma tese), mas admite a possibilidade de enganos e a revisibilidade/reformulação das teorias científicas.

11 de fevereiro de 2012

O conhecimento como processo e como produto

No dia-a-dia, referimo-nos ao conhecimento como, simultaneamente, um processo de aprendizagem e o produto desse fenómeno, isto é, o conjunto de saberes adquiridos.

O conhecimento é um processo através do qual se conhece, ou seja, é o acto cognitivo.
O conhecimento é um processo de apreensão, por parte de um sujeito cognoscente (ser que conhece), das características de um objecto (ser que é conhecido e que, no seu sentido etimológico, está ante ou opõe-se ao sujeito), podendo este ser um aspecto do sujeito (como as suas acções ou ideias) ou exterior a ele (por exemplo, os plátanos numa manhã de primavera ou um colega de trabalho). O acto de conhecer (ou acto cognitivo) é, segundo Foulquié, intencional e dependente das capacidades racionais do sujeito, exigindo a sua percepção e posterior abstracção do objecto (pois só assim ambos se tornam transcendentes, isto é, entidades separadas). Uma vez imanente (ou seja, separado) ao objecto, o sujeito pode, através da observação ou imaginação deste e reflexão (ou raciocínio) sobre as suas características, formar, na sua mente, uma imagem, uma frase ou um outro tipo de representação que defina o que conheceu. Esta conceptualização, porém, e o modo como o objecto é percepcionado não são, porém, desprovidas de um contexto cognitivo: de facto, estas dependem de marcadores socioculturais, genéticos e biológicos e de elementos da história pessoal do ser cognoscente que, como foi leccionado no ano anterior, são factores modeladores das acções de cada indivíduo e do valor que este lhes atribui.

Para a fenomenologia, o (processo de) conhecimento é a determinação do sujeito pelo objecto.
A fenomenologia, que procura descrever o conhecimento enquanto processo, esclarece que os termos «sujeito» e «objecto» só existem em função um do outro. Embora inicialmente ambos os seres sejam transcendentes, o conhecimento inicia-se com a saída do sujeito em direcção à esfera do objecto (o momento de abstracção supramencionado) e inclui um momento em que estes se tornam imanentes (o sujeito mantém-se na esfera do objecto, assimilando as suas qualidades), terminando com o retorno do ser cognoscente a si mesmo e subsequente formação de uma representação do que foi conhecido com base nas características apreendidas. Desta descrição, pode concluir-se que sujeito e objecto, embora relacionados entre si, não são permutáveis, visto que o segundo, possuindo um papel passivo (apenas deixa conhecer), se mantém constante, antes e após o processo, e que o primeiro, que procura conhecer (é activo), é mudado (adquire novas ideias pelo conhecimento do objecto e pela formação da sua representação mental) pelo objecto. Assim se explica que, para a fenomenologia, o conhecimento consista na determinação (alteração) do sujeito cognoscente pelo objecto que conhece.

O conhecimento é o produto do acto cognitivo.
O termo «conhecimento» pode, também, ser usado para descrever o que resulta do acto de conhecer e que, como explicado acima, não é mais que um conjunto de imagens, conceitos e outras representações (como o explica a fenomenologia) que um sujeito cognoscente por apreensão das qualidades de um objecto e que, de acordo com a psicologia, está dependente do contexto em que o acto cognitivo se desenrola.

Os dois usos da retórica

«A vulnerabilidade da retórica está patente: pode deslizar da arte de persuadir para a arte de enganar.» — M. B. Pereira

A retórica branca persuade.
O bom uso da retórica, ou retórica branca, consiste numa argumentação com a intenção de persuadir o interlocutor a aderir a uma dada tese, ou seja, de o influenciar, sem, contudo, o iludir a respeito desta ou prejudicar. Para que tal situação se verifique, é essencial que o discurso seja caracterizado pela predominância do logos sobre o pathos e o ethos (só assim se garantirá que a concordância ou discordância não advém somente da chantagem emocional ou devido à reputação do discursante), embora as últimas estratégias de persuasão também devam estar presentes, e que exista respeito e fidelidade ao objectivo do diálogo (um princípio ético denominado princípio da cooperação que exige que as intervenções sobre assuntos distinto sejam postas de parte) de ambas as partes, isto é, que haja um acordo tácito de cooperação mútua entre orador e interlocutor. Durante o debate, deverá observar-se o cumprimento do princípio da livre expressão, segundo o qual todos os participantes têm o direito de dar a sua opinião, sem, contudo, permitir-se que estes o façam sem fundamentar as suas afirmações: de facto, de acordo com o princípio da prova, é imperativo que não se façam asserções sem justificação, que são, aliás, interditas de acordo com o princípio da qualidade. A argumentação de ambos os lados deve ser clara (princípio do modo) e coerente (pois, de acordo com o princípio da coerência, apesar do orador dever manter alguma abertura mental às opiniões dos outros por uma questão de humildade e modéstia, é essencial que este se mostre crítico das suas ideias e fiel ao ponto de vista que defende, evitando afirmações contraditórias), pressupondo um conhecimento da situação problemática em questão e das implicações positivas e negativas das várias soluções (os discursantes apresentar tantas informações como as que serão úteis para o debate e reflexão, de acordo com o princípio da quantidade). Numa tentativa de manter as boas relações, deverá proibida, a ambas as partes, segundo o princípio da precisão, a distorção das afirmações dos adversários.
As argumentações filosóficas, são sempre caracterizadas pelo uso ético (ou bom uso) da retórica, que é orientado pela busca da verdade e obedece aos supramencionados princípios de boa-fé.

A retórica negra manipula.
Quando o orador permite que os seus interesses pessoais se sobreponham à busca da verdade, procura ter um efeito mais poderoso no auditório e, nesta situação, a persuasão deste dá lugar à sua manipulação: o discursante faz um mau uso da retórica, servindo-se desta com a intenção de conduzir à adesão acrítica e involuntária dos interlocutores à sua tese. Contrariamente à persuasão, a manipulação, ignorando as capacidades racionais do auditório, pressupõe uma predominância do pathos e ethos no discurso que garante ao orador exercer um papel de domínio emocional sobre o público que permitirá forçá-lo a converter-se aos seus ideais, apresentados como verdade incontornáveis, apesar da carência de argumentos lógicos que os suportem. Os pontos de vista contrários são, muitas vezes, deturpados ou ridicularizados.
O discurso publicitário seduz pela imagem e pelo pathos e que se serve do slogan (uma expressão ou frase curta facilmente memorizável e com um ritmo agradável que as pessoas acabam por, devido à sobrexposição às camapnhas publicitárias, interiorizar e, muitas vezes, tomar como uma verdade do senso comum), sendo, por isso, um exemplo de retórica negra. O discurso político, que, em campanhas eleitorais se serve da publicidade, também é, frequentemente, realizado de forma pouco ética, quando os oradores procuram credibilizar a sua mensagem independentemente dos meios e, por isso, deturpam e ridicularizam os pontos de vista dos seus adversários ou mesmo os próprios candidatos, silenciando-os.
Todavia, a retórica negra não pode sempre ser atribuída somente o orador. De facto, o auditório também pode facilitar o carácter manipulativo da argumentação, quando avalia a tese exposta em função de critérios irrelevantes para a sua validade (aspecto físico do orador, etc.), quando a sua ignorância em relação ao tema não lhe permite exercer um papel crítico em relação aos pontos de vista defendidos ou quando, numa atitude de laxismo, se recusa a ponderar sobre o assunto e retirar conclusões sobre o que ouve. 

Sofistas e filósofos na Grécia Antiga

A relação entre a retórica e a Filosofia remonta à Antiga Grécia e ao conflito que aí tomou lugar entre filósofos e sofistas, dois grupos de sábios que competiam pelo direito de instruir os cidadãos (gregos livres, do sexo masculino), a quem, de acordo com as regras da democracia aí implantada, competia a discussão e direcção dos negócios da pólis grega.

Para os sofistas, a verdade é subjectiva e relativa.
No século V a. C., em Atenas, os sofistas (do grego sophistēs, «aquele que faz da sabedoria um negócio») surgem como uma classe de professores que, ensinando aos jovens temas relativos à moral, política, economia, e outras dimensões da vida humana (deve sublinhar-se que o sofismo é uma disciplina antropocêntrica), se elevam socialmente. Muito viajados, os sofistas adquirem conhecimentos sobre diversas culturas, que prontamente transmitem aos seus discípulos, e, notando que as opiniões das pessoas diferem consoante o seu estatuto social, costumes e outros marcadores genéticos, culturais e geográficos, defendem que a verdade é um valor subjectivo que, para cada indivíduo, assume uma forma distinta: com efeito, de acordo com Prótagoras, "o homem é a medida de todas as coisas" e, por isso, "o verdadeiro é o que parece a cada um".
A aparente relatividade da veracidade leva os sofistas a questionar o que é tradicional e as convenções da sociedade e obriga-os a justificarem os seus ensinamentos perante os seus pupilos e os cidadãos atenienses não pela via demonstrativa (caracterizada pela verdade absoluta das suas proposições) mas pela via argumentativa e através da persuasão dialéctica. Estes professores tornam-se, deste modo, os primeiros retores, isto é, os primeiros a defender, ensinar e divulgar a arte de bem falar (ou seja, a retórica) e a consciencializar os restantes cidadãos do poder da estética argumentativa e da palavra na fundamentação/credibilização e destruição de teses.

Para Platão, a retórica está ao serviço do método demonstrativo.
Fiel aos ensinamentos do seu mentor, Sócrates, Platão torna a procura da verdade objectiva e universal (que transcende barreiras étnicas e culturais e, de acordo com a doutrina sofista, não existe) o objectivo da sua vida e dos seus estudos. Deste modo, no diálogo da sua obra Górgias, Platão condena a arte de persuasão sofista, a que ele denomina retórica (vocábulo derivado de retor, que designa o orador, e da mesma família de palavras que retoreia, a eloquência e capacidade de discursar em público), visto considerá-la um jogo de sedução que, baseando-se apenas em argumentos prováveis e não inegáveis, negligencia a verdade absoluta (é puramente um «simulacro de saber») e visa somente satisfazer interesses particulares. Mais tarde, porém, Platão admite que a retórica poderá ser útil quando é baseada no conhecimento produzido pela dialéctica, isto é, pelo diálogo e debate, que, como demonstrado por Sócrates, tem o poder de banir falsas opiniões, e apresenta-a como uma arte ao serviço da filosofia, isto é, como um instrumento disseminador da verdade definitiva (mas não de opiniões meramnte plausíveis) e que facilita a compreensão desta pelo público.

Para Aristóteles, a retórica está ao serviço do método argumentativo.
Tendo estudado a lógica formal (demonstrativa), que permite apurar verdades universais e inquestionáveis, Aristóiteles conclui que esta só pode ser usada no domínio das ciências objectivas, sendo insuficiente para apoiar as afirmações do âmbito das acções e valores. Essas asserções só podem, a seu ver, ser defendidas através do discurso argumentativo, que só pode ser construído após uma investigação minuciosa da temática seguida da selecção dos argumentos mais persuasivos (verifica-se, pois, que o objectivo destas redacções é o convencimento dos receptores a aderir à doutrina ensinada, o que é confirmado por Aristóteles em Arte retórica, na qual este distingue várias estratégias de persuasão, como ethos, pathos e logos) e disposição destes na composição a proferir. Para Aristóteles, portanto, a retórica e a dialéctica, mais do que um meio de veiculação da verdade demonstrada objectivamente (como o eram na opinião de Platão), surgem como modos de formar (pois exigem a pesquisa e aquisição de saber), expressar e justificar opiniões plausíveis sobre dimensões da vida humana (como religião, política, direito, etc.) nas quais não existem certezas a partir das quais se possa raciocinar. 

Filosofia, retórica e democracia

Tanto na Grécia Antiga como nas democracias actuais, é garantida aos cidadãos, à nascença, liberdade, tanto física como de opinião e de expressão. Confrontado com diversas situações do quotidiano, o Homem é, pois, levado a reflectir e questionar a validade das convenções e relativos a dimensões da vida humana nas quais não podem enunciar-se proposições universalmente tidas como verdadeiras, problematizando as questões sob ponderação, isto é, filosofando. A pluralidade de soluções plausíveis nestas áreas é, devido ao seu carácter subjectivo, notória e promove, não só a recusa da perpetuação do carácter dogmático ou definitivo das afirmações (isto é, o cultivo de um espírito, apesar de aberto, crítico), como a troca de ideias e argumentos num diálogo e, eventualmente, a procura da persuasão do interlocutor num exercício de retórica, que exigirá uma pesquisa prévia e selecção de argumentos racionais que suportam a tese, dois momentos do método filosófico. Com efeito, numa sociedade democrática, em que a lei (directa ou indirectamente) é ditada pela vontade da maioria, só através da argumentação persuasiva se pode modelar o pensamento dos que nos rodeiam e, desse modo, participar e possuir um impacto significativo na vida comunitária.

[isto é horroroso]

8 de dezembro de 2011

A arte da retórica

O discurso argumentativo consiste na verbalização de uma opinião e das razões pelas quais se a defende, com a finalidade de persuadir o receptor a aderir à ideia exposta. Para Aristóteles, este objectivo só poderia ser atingido através da retórica, ou lógica argumentativa, que o filósofo considerava uma arte cujo domínio requeria o aperfeiçoamento de técnicas de persuasão, separadas em dois campos: independentes do orador e dependentes deste.

A. Meios independentes do orador
Factos, dados científicos, leis, testemunhas e outros elementos não relacionados com o discursante, apesar de independentes deste, podem ser utilizados por si para persuadir a sua audiência de que a tese que defende é a correcta.

B. Meios dependentes do orador
A persuasão do público será uma tarefa fácil se o orador apresentar somente uma demonstração objectiva, mas, quando se trata de uma argumentação de cariz subjectivo, sendo as premissas plausíveis, as conclusões são discutíveis, pelo que o este é obrigado a recorrer a outras estratégias persuasivas para se credibilizar e às suas palavras. Aristóteles distingue três meios de persuasão dependentes do orador:
Logos refere-se ao discurso propriamente dito, sendo uma estratégia através da qual, pela construção de um texto brilhante, mas inteligível e natural, convincente, expressivo, ritmado e interpretado pelo orador de forma expressiva, o público se deixa deleitar (delectare) e  influenciar (docere, ensinar) pelas ideias nele veiculadas. O discurso pode possuir, na sua estrutura, argumentos dedutivos (típicos das demonstrações e criados em conformidade com a lógica formal), é mais vulgar serem usados argumentos não-dedutivos ou informais: indutivos (nos quais se parte das características da amostra para retirar conclusões sobre todo o universo em estudo, como é o caso do argumento com base em exemplos, que contém, muitas vezes, um contra-exemplo que funciona como momento de concessão), analógicos (nos quais, por comparação entre A e B, se retiram conclusões ou sobre A ou sobre B), com base na autoridade (nos quais a conclusão se retira com base no que alguém com um papel de relevo na matéria afirmou) ou sobre causas (nos quais se estabelece uma relação entre dois fenómenos, em que um motivou o outro).
Ethos, que se refere ao carácter do orador, é uma estratégia usada por ele para causar boa impressão no público. Ao esforçar-se por considerado uma pessoa íntegra e honesta (isto é, incapaz de adulterar informações), responsável e racional (ou seja, alguém que se responsabiliza pela resolução dos problemas apresentados) e benevolente (com compaixão), credibiliza-se, ganhando a confiança do auditório, o que contribui para o sucesso da sua apresentação; pelo contrário, um indivíduo de aparência desonesta criará rapidamente inimigos na plateia, que não só não se interessarão pelas suas opiniões como levarão os seus companheiros a discordarem dele. O ethos é, muitas vezes, cultivado, em textos escritos, nos momentos de concessão, isto é, instantes de reconhecimento da tese oposta à que é defendida e da veracidade de alguns dos argumentos que apresentam, pois estes garantem ao autor um carácter aparentemente razoável.
Pathos é uma estratégia de apelo aos sentimentos e paixões do público. Quando executada correctamente, o auditório identifica-se com as emoções evocadas pelas imagens metafóricas construídas pelo orador ou pelas histórias (geralmente tragédias) por ele recontadas é cumprido o objectivo de movere (comover).

Demonstração e argumentação

Como ser racional, o Homem está predisposto para pensar relacionando os juízos por si formados acerca do que o rodeia recorrendo a princípios lógicos. Assim, as ideias um indivíduo só podem ser provadas pela verbalização dos raciocínios que as originaram, ou seja, através da demonstração ou da argumentação.

As demonstrações obedecem à lógica formal.
Numa demonstração, é utilizada a dedução, um tipo que raciocínio que, como estudado no âmbito da lógica aristotélica, é constrigente, ou seja, garante que a conclusão obtida é obrigatoriamente a que se pode extrair a partir das premissas nele expostas. Esta propriedade, que implica que, partindo de premissas em conformidade com a realidade (verdadeiras) e raciocinando de acordo com a lógica formal, tal como se faz pela via demonstrativa, se constrói uma conclusão verdadeira aplicável universalmente ao objecto de estudo das restantes proposições, está na génese da dualidade de valor (isto é, bivalência) dos argumentos dedutivos, aos quais só poderá ser atribuído ou o valor de verdade ou o de falsidade. Devido à inexistência de um meio-termo ou outra alternativa de classificação destes raciocínios, não há espaço para a discórdia, não se criando, por isso, um debate: diz-se, pois, que o método demonstrativo é um monólogo.

As argumentações obedecem à lógica informal.
Sempre que possível, recorremos à demonstração para provar as nossas ideias. Porém, em dimensões da vida humana como a ética, a religião e a economia, por exemplo, não podendo enunciar-se proposições universalmente tidas como verdadeiras devido a divergências socioculturais, a lógica dedutiva não basta. Assim, para formar as suas opiniões, o Homem recorre a um tipo de lógica informal (isto é, mais flexível, ao invés de constringente), através da qual, podendo extrair-se várias conclusões razoáveis das premissas (plausíveis, não necessariamente verdadeiras) de que se dispõe, escolhe acreditar numa só. A sua defesa é feita através da argumentação, que, visto tratar de convicções e não verdades inquestionáveis, se torna polivalente (admite vários valores de plausibilidade), incitando à busca dialógica (= através do diálogo) de uma conclusão mais provável.

A demonstração faz parte do método das ciências exactas, enquanto a argumentação é característica das ciências humanas.
De um modo geral, pode dizer-se que a demonstração, visto, de acordo com a lógica formal, não poder ser usada com subjectividade, adquire um carácter impessoal e, como tal, universal, transcultural e intemporal, tornando-se, assim, o método de comprovação de eleição das ciências exactas, caracterizadas pela sua objectividade. Já no domínio das ciências humanas, como a psicologia, sociologia, antropologia, etc., em que as emoções humanas possuem um papel de relevo, as ideias adquirem um carácter pessoal, pois variam conforme a vivência do indivíduo que as expressa, de marcadores genéticos e do ambiente sociocultural em que este se desenvolve, só podendo ser defendidas através da aplicação da lógica informal na construção de um texto argumentativo.

8 de novembro de 2011

Definição de lógica

A Lógica é a área da Filosofia que estuda os princípios através dos quais se pode distinguir um argumento válido de um inválido. Podemos identificar dois tipos de lógica: natural e científica.

A lógica espontânea é inata.
Como ser racional, o Homem está predisposto para pensar (e, consequentemente, discursar e agir) bem, isto é, em conformidade com a série de princípios lógicos que lhe servem de orientação. O raciocínio humano é, pois, embora não nos apercebamos, caracterizado pela dissecação da informação recebida do meio externo em argumentos e posterior procura da coerência interna destes. Esta análise, que se designa lógica espontânea, resulta de um exercício natural da inteligência e racionalidade humanas (podemos dizer que lhes é inerente), sendo, por isso, inata e intuitiva.
À semelhança do que sucedia com Savater e o «bom gosto ético», também alguns filósofos admitem que esta lógica, embora presente desde a nascença, é alterada a e aperfeiçoada com a nossa educação, tornando-se, à medida que nos desenvolvemos, uma mescla de elementos inatos e culturais.

A lógica científica surge para colmatar as lacunas da lógica espontânea.
Nem sempre a lógica espontânea pode ser aplicada, pois, sendo esta intuitiva, é muito limitada. Há vários problemas, como é o caso do célebre problema de Monty Hall, em que a lógica espontânea falha e precisamos de recorrer a um tipo de lógica mais regrada. É aqui que surge a lógica científica, um estudo do pensamento racional (isto é, lógico) que culmina na definição dos princípios pelos quais este se rege. As normas identificadas tornar-se-ão o instrumento de avaliação da coerência dos argumentos do discurso, isto é, aquilo que permite classificá-los quanto à sua validade.
Verificamos que a lógica científica só pode determinar se um argumento é coerente ou não, não podendo, contudo, pronunciar-se quanto à fidelidade deste à realidade. Diz-se, pois, que esta é uma lógica formal: só concerne a forma (modo de encadeamento das premissas e das conclusões, que pode ser válido ou inválido), não o conteúdo (significado das proposições, que podem ser verdadeiras ou falsas).


11 de junho de 2011

As dimensões social e pessoal da religião

A religião é, à semelhança da Ciência ou da Filosofia, um conjunto de doutrinas que explicam o mundo que nos rodeia. Mas, para além desta função explicativa, a religião desempenha um relevante papel na relação do ser humano com os seus semelhantes (dimensão social) e consigo mesmo (dimensão pessoal).

A religião tem uma dimensão social porque regula as interacções humanas.
À semelhança da ética, também a religião, recorrendo a dogmas, pondera sobre a forma de agir para alcançar a felicidade (a «vida boa») e responde a esta questão elaborando um código moral que deve ser observado na conduta humana e incentivando ao seu cumprimento através da disseminação da ideia de que os que agem em conformidade com ele serão salvos e os restantes condenados a castigos terríveis. Assim, exerce uma função normativa sobre o ser humano, impelindo-o a comportar-se em relação aos outros da forma considerada correcta (= regula a interacção humana).
Por outro lado, visto ter, associados a si, numerosos ritos, como festas, sacrifícios, peregrinações, etc., nos quais intervêm tanto crentes como não-religiosos, podem contribuir para uma aproximação dos membros de uma comunidade, tendo, por isso, uma função de coesão social.

A religião adquire uma dimensão pessoal para um indivíduo quando este tem uma experiência religiosa.
A experiência religiosa é algo que é sofrido pelo agente, sendo, nessa medida, um mero acontecimento. Tal pode ser provocado pela percepção de um indivíduo da efemeridade da vida (provoca uma sensação de finitude e obriga a enfrentar a sua mortalidade e a dos que o rodeiam) e/ou por este se aperceber de que a vida de qualquer ser é fortemente influenciada por factores exteriores a si e, portanto, nenhum ser é senhor da sua existência (contingência). Estas realizações levam o Homem a sentir a necessidade de conforto, o que o aproxima da religião, já que o que é considerado sagrado (um deus, por exemplo) assegura protecção aos que se mostrarem crentes.
A partir deste momento de epifania, o indivíduo desperta para a ideia de transcendência, isto é, para a ideia de que a nossa existência é algo de profundo, complexo e intrincado que nunca poderá ser compreendido totalmente por nós. Tornando-se crente, a religião passa a ter um papel essencial na sua vida, já que vai servir-se desta como apoio psicológico e como fonte de inspiração para o desenvolvimento da sua personalidade moral.

As éticas kantiana e de Jonas

Com base nos textos lidos na aula, distinguimos os pontos fundamentais da ética defendida por dois filósofos alemães distintos: Immanuel Kant e Hans Jonas.

A ética kantiana é deontológica e intencionalista.
Kant (século XVIII) acreditava que, uma vez que todo o ser humano é um ser racional, se todos os homens pensarem de forma lógica, chegarão às mesmas conclusões. Esta aplicação da razão prática (= razão aplicada às problemáticas do agir) criaria uma «lei moral», isto é, um código de conduta que seria aplicável a uma escala universal.
Para vivermos bem, devemos executar acções «boas», o que para este filósofo significa cumprir a «lei moral», ou seja, agir de forma a que a nossa conduta possa ler vista como um padrão para a Humanidade. Obedecer à «lei moral» deve (note-se o verbo «dever»: a ética kantiana é deontológica porque é relativa aos deveres) ser, por isso, o que desejamos fazer através de todas as nossas acções: para Kant, não é o fim alcançado que é relevante para a classificação da acção como boa ou má (contrariamente ao que verificamos na ética teleológica), mas a intenção do agente (é uma ética intencionalista). O céu estrelado sobre mim, a lei moral em mim, escreveu Kant, explicando que a razão (céu estrelado) o guia e que a lei moral está presente nas suas acções.
Sobre nós, o filósofo alemão terá dito que se conhecem três níveis de humanidade: a animalidade, estádio alcançado pelos indivíduos cuja vida se reduz a satisfazer os instintos primários; a individualidade, característica de quem já possui um certo poder racional; e a personalidade, que pertence aos seres com consciência de si e dos outros e que possuem um carácter moral.

A ética de Jonas é consequencialista.
Hans Jonas viveu durante o século XX, período de revolução nas ciências no qual o Homem se apercebeu de que a tecnologia por ele desenvolvida e a vida por ele levada tem um impacto (negativo) sobre o nosso planeta e a sua biosfera. Como tal, a ética por ele desenvolvida centra-se nas consequências (ética consequencialista) da acção humana sobre a Natureza e sobre a Humanidade: o bem é, para si, tudo o que salvaguardar a existência de vida genuína (isto é, não manipulada pelo Homem).
Segundo o filósofo, uma acção tem valor moral quando obedece à obrigação que o agente tem para com os que a acção afecta (seja essa obrigação a de preservar o meio ambiente ou a vida dos passageiros de um automóvel) e este assume a sua responsabilidade pelo seu bem-estar e pelas consequências da sua acção. A palavra chave? Responsabilidade.

Vivemos num mundo cada vez mais preocupado com o impacto ambiental da tecnologia desenvolvida pelo Homem: falamos do aquecimento global, da ilha de lixo do Pacífico, dos derrames petrolíferos... Por este motivo, a ética de Jonas, que apela à preservação do nosso mundo de hoje para as gerações futuras, é mais actual que a de Kant, que viveu numa época em que a defesa do ambiente não contava, decerto, da lista de preocupações do ser humano.

Cuidar do ele: ética, direito e política

«Ele» é todo o indivíduo que não conhecemos mas que pertence à mesma sociedade que nós. Visto nunca termos interagido com ele, não podemos cuidar dele directamente, mas apenas através instituições. Estas são estruturas estabelecidas pela sociedade (resultam de um esforço de racionalização e organização de um povo), representando-a (são representativas), com o objectivo de dirigir e educar a população, isto é, com funções civilizadoras (ensinam os membros da comunidade a respeitarem direitos e deveres, promovendo o exercício da cidadania), de coesão social (garantem a convivência entre os sujeitos individuais) e de julgar as acções individuais (classificando-as como boas ou más, permitidas ou proibidas). A sua finalidade é, por isso, o bem comum, ou seja, o bem-estar da sociedade a que pertencem.

Cabe ao «eu» não só ajudar à construção destas organizações, mas também zelar para que se mantenham incorruptíveis. Assim, o «eu» reconhece deste modo o «tu» e o «ele» como cidadãos pertencentes a um todo colectivo que é a sociedade, tal como é o seu caso, procurando proteger os seus (tanto os do «eu» como os do «tu» e do «ele», já que são todos cidadãos) direitos e reconhecendo isto como um dever que deve ser cumprido em prol de um bem comum. Esta capacidade de perspectivar a realidade em função do bem colectivo é característica das instituições e, num indivíduo, classifica-se como uma atitude de cidadania.

As três grandes instituições de que dispomos para cuidar do «ele» são o Estado, o Direito e a Política.
Estado é uma instituição que representa uma sociedade civil, isto é um povo com direitos e deveres, que ocupa um território próprio e tem poder para se governar a si própria (tem soberania).
Direito é o que está certo, porque é a regra que resulta da aplicação da «rectidão» da justiça, que é um valor ético (e, segundo Aristóteles, o mais importante destes) presente no que está correcto e, simultaneamente, tanto um ideal individual (do indivíduo), já que cada um de nós o procura na sua relação com os outros, como um colectivo (da sociedade), na sociedade civil.
Política é a arte de governar zelando por um Estado e criando leis e aplicando-as de modo a que estas se adeqúem às circunstâncias.

Ética, Direito e Política complementam-se, contribuindo para o bem comum, isto é, para o bem da sociedade civil.
Visto o Homem não nascer com um código de conduta a ter em sociedade imprimido nos seus genes, necessita de criar instituições que regulem o convívio entre os seres humanos. Tanto a Ética como o Direito e a Política são entidades que o fazem, procurando, desse modo, o bem comum.


Cuidar do tu

«Tu» é o indivíduo que conhecemos. Precisamente porque o Homem é um ser essencialmente social, a ética intervém nas relações entre seres humanos, já que a manutenção destas é algo tão importantes para o alcance da vida boa: como afirma Savater, um «vínculo de respeito e amizade» entre seres humanos é «o mais precioso de quanto existe no mundo». Assim, visto que a ética desempenha um papel relevante na interacção humana, podemos dizer que esta tem uma dimensão social.

Tratar o outro humanamente ou como pessoa significa pôr-se no seu lugar.
Para que tratemos alguém como pessoa é necessário reconhecê-lo como nosso semelhante. Por outras palavras, tratar os que me rodeiam humanamente consiste em admitir que tanto o «tu» como o «ele» são, como eu, pessoas. E como o fazemos? Pondo-nos no seu lugar, isto é, adoptando o seu ponto de vista e procurando perceber como se sentem: é necessário ouvir, respeitar e tentar compreender. Só assim, segundo Savater, nos aperceberemos de que estas entidades são tão reais e tão humanas como nós e poderemos estabelecer com elas um «vínculo de respeito e amizade».
Que os que nos rodeiam e interagem connosco se ponham no nosso lugar é, segundo o filósofo, um direito humano.

Quando me ponho no lugar do outro, respeito a sua dignidade.
Sendo eu uma pessoa, sou dotada de dignidade humana, portanto, ao encarar o outro como meu semelhante (objectivo que atinjo quando me ponho no seu lugar), estou, também, a reconhecer a sua dignidade, isto é, a admitir que este (1) é livre e, portanto, pode actuar de acordo com a sua consciência moral, (2) é singular, ou seja não à ninguém igual a si, e (3) tem a capacidade de se modelar a si próprio e construir a sua personalidade como lhe aprouver.

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Cuidar do eu

«Eu» é o próprio agente. Segundo a ética de cuidado, ao cuidar de si mesmo, o «eu» está, indirectamente, a cuidar dos outros, uma vez que, se se sentir melhor consigo mesmo, conseguirá transmitir maior alegria e carinho aos que o rodeiam (o «tu» e o «ele»), cuidando melhor deles.

Cuidar de si significa ouvir-se a si mesmo e ouvir os outros.
Para cuidar de alguém, é necessário estar atento às suas necessidades. Assim, o «eu» deve «prestar atenção» a si mesmo e ganhar consciência de si e dos seus desejos, algo que só pode ser obtido através de um exercício de introspecção e reflexão sobre o que lhe garantiria uma «vida boa». (É indispensável que o sujeito se assuma um ser essencialmente livre e, consequentemente, responsável pelas suas acções. Se tal não sucede, esta reflexão não fará sentido, uma vez que o «eu» considerará que todas as suas acções são fruto de intervenções de forças exteriores a si.)
O ser humano é um ser social e, como tal, necessita do contacto de outros seres para se sentir feliz (mesmo os ermitas dialogam com Deus ou consigo mesmos): happiness is only real when shared. Como Savater afirma, nada no mundo é melhor do que estabelecer um vínculo de respeito e amizade com os nossos semelhantes, que advém da aplicação do «bom gosto moral» na criação de um carácter moral, isto é, uma personalidade que nos impele a tratar bem os outros (cuidar deles), tornando-nos passíveis de sermos estimados.
Em suma, cuidar de si mesmo implica desenvolver uma consciência moral, curando-se da imbecilidade. 

O «eu» deve ser egoísta.
Terminada a reflexão e definido o que prejudica o nosso plano de ter uma «vida boa» (o mal) e o que o auxilia (o bem), o «eu» deve fazer um esforço por evitar o mal, isto é, colocar os seus interesses em primeiro lugar (= ser egoísta) e agir de modo a alcançar a vida boa.

A ética do cuidado: o eu, o tu e o ele

Contrariamente à ética consequencialista (julga a moralidade de uma acção pelas suas consequências) e à ética deontológica (julga a moralidade de uma acção pela sua adesão a uma regra moral, sendo o seu objectivo o alcance da vida recta (= correcta, de acordo com a regra)), que defendem a universalização dos códigos morais de conduta e imparcialidade nos juízos feitos, a ética do cuidado (uma posição teleológica, isto é, que explicita claramente a finalidade que deve ser alcançada com uma acção moralmente boa) enfatiza a importância das relações. Segundo ela, a intenção ética (que é, como sabemos, o alcance da «vida boa») é concretizada assegurando o bem-estar dos que nos rodeiam (tanto o «tu», que nos é próximo, como o «ele», que é o indivíduo que não conhecemos) e o nosso (= do «eu»), sendo que a minha felicidade afectará positivamente os meus semelhantes e a deles também contribuirá para a minha. Assim, ao cuidar de uma destas três entidades («eu», «tu» ou «ele»), isto é, tratá-la com gentileza e respeito, havendo ponderado o que fazer para tornar a sua vida melhor e tomando responsabilidade pela acção escolhida, estamos, indirectamente, a cuidar das outras duas.

A consciência moral

A consciência moral é, segundo Savater, a cura para a imbecilidade, uma maleita que aflige aqueles que necessitam de se apoiar em agentes exteriores a si para guiar a sua vida e justificar a sua conduta, em vez de fazer uso da sua liberdade e capacidade de reflexão.

Para ter consciência moral é necessário querer viver «humanamente bem»...
Viver «humanamente bem» significa ser-se feliz consigo mesmo e feliz nas suas relações com os outros seres humanos. Para que tal suceda, é preciso (1) fazer um esforço para que a nossa conduta se oriente no sentido de realizar os nossos desejos e quereres, para que nos sintamos bem connosco, o que implica «prestar atenção» às nossas acções e às suas consequências, e (2) estabelecermos vínculos de amizade e respeito com os nossos semelhantes, o que requer o desenvolvimento de um «bom gosto moral» (um juízo interno), isto é, noção do que é correcto e incorrecto fazer-se, que nos guiará na nossa interacção com o mundo.

...e é ela que nos garante esta vida «humanamente boa».
A consciência moral é o que nos permite (a) ter noção de que, para vivermos bem e estabelecermos vínculos de amizade e respeito com os nossos semelhantes, o bem deve ser praticado e o mal evitado, sendo, por isso, necessário, por vezes, reagir ao mal, e (b) desenvolver um juízo interno para sabermos distinguir estes dois conceitos (bem e mal), isto é, desenvolver um «bom gosto moral».

A consciência moral pressupõe e desenvolve a liberdade e responsabilidade de um indivíduo.
Para desenvolver uma consciência moral, é preciso admitir a nossa liberdade e responsabilidade, já que esta só faz sentido se considerarmos o Homem um ser fundamentalmente livre, pois, caso contrário, acreditaríamos que as nossas acções são fruto de causas exteriores a nós e que não as controlamos, sendo-nos inútil «prestar atenção» ao que fazemos. Assim, o facto de assumirmos sermos livres implica que a admissão de que nossas acções são inteiramente da nossa autoria e, consequentemente,  de que as suas consequências são responsabilidade nossa.

Sobre a natureza da consciência moral há duas grandes escolas de pensamento: o inatismo e o empirismo.
Os inatistas defendem que ela é uma capacidade inata, ou seja, que nos acompanha desde o nascimento, estando marcada nos nossos genes. Já os empiristas argumentam que ela surge como resultado da educação que recebemos e como algo que aprendemos lentamente e através da interacção social. 
As posições conciliadoras, como a que é apoiada pelo autor da Ética para um jovem, asseguram que a verdade reside algures no meio das duas teses anteriores: a consciência moral é algo que nos acompanha desde o berço, mas esta só é desenvolvida quando vivemos em sociedade, evoluindo à medida que progredimos da heteronomia (= dependência dos outros) para a autonomia (= independência). Assim, enquanto uma criança distinguirá o bem do mal com base no que lhe foi ensinado pelos pais, um adulto reger-se-á pelo seu próprio código moral (pois desenvolveu o seu «bom gosto moral» ao longo dos seus anos a viver em sociedade).

26 de março de 2011

Moral e ética

A moral, do latim mores, traduz-se nos códigos morais, que são o conjunto de normas de conduta e costumes que uma sociedade ou cultura acredita serem aceitáveis ou bons. Estes são parte integrante do sistema normativo de uma cultura ou, antropologicamente falando, do seu padrão cultural.

Ética, é, no entanto, um conceito diferente, uma vez que se refere a uma reflexão filosófica sobre o motivo pelo qual os consideramos válidos e sobre a legitimidade desse motivo e a uma comparação com outros códigos morais defendidos por outras culturas. A ética destina-se a ajudar o ser humano a ser feliz e viver uma vida boa, pelo que age sobre o pressuposto de que o ser humano é livre (se não o fosse, a sua vida estaria traçada à nascença e a ética seria inútil) e que, por isso, as suas acções são fruto da sua vontade e são da sua responsabilidade (pois foi ele quem escolheu executá-las). 
As questões éticas, são, por isso, questões filosóficas sobre as problemáticas do agir (= conduta humana) e da moral.

Interacção entre culturas

Vivemos num mundo com uma diversidade cultural imensa. Contudo, a relação entre culturas e entre indivíduos e culturas pode assumir diferentes formas.

O monoculturalismo é um modelo em que só existe uma só cultura.
Esta, por dominar todas as outras, subjuga-as. Assim, as pessoas de culturas diferentes, ao interagirem com a comunidade, são forçadas a adoptar os costumes da cultura dominante para se integrarem (modelação social), pelo que há homogeneidade cultural (todos os indivíduos pertencem à mesma cultura).

O multiculturalismo é um modelo em que existem várias culturas.
Estas vivem em comunidade, havendo aceitação das diferenças e tratamento de todos os indivíduos como iguais. Contudo, as culturas estão individualizadas e isoladas umas das outras, não se verificando partilha de saberes e valores ou qualquer tipo de interacção.

O interculturalismo é um modelo em que existem várias culturas em interacção.
Estas coexistem numa comunidade baseada na igualdade, na liberdade e nos direitos de cada indivíduo. As diferenças entre as culturas são reconhecidas e aceites, encorajando-se o diálogo intercultural com o objectivo de fomentar a procura de semelhanças e as partilhas de saberes, valores e costumes.

O racismo e xenofobia são conceitos diferentes porque o primeiro é relativo à raça do indivíduo e o segundo à sua naturalidade.
O racismo é uma doutrina segundo a qual a raça, que resulta de indicadores genéticos e se manifesta na aparência física de um indivíduo, é o principal determinante das suas características e capacidades e está associada a um certo estatuto (algumas raças são superiores a outras). Assim, o racismo pressupõe a discriminação dos seres humanos com base na sua raça.
A xenofobia é o medo descomedido ou ódio aos estrangeiros ou à sua política ou cultura.

O chauvinismo é o desprezo do que é estrangeiro e exaltação pelo que é nacional.
Consiste no o amor exagerado e cego à pátria e fé na sua superioridade conjugado com o menosprezo sistemático e, até, agressivo pelo que é estrangeiro.

O conceito de cultura

Antropologicamente falando, cultura é "o conjunto dos conhecimentos, crenças, formas de arte, códigos morais, leis, costumes e outras capacidades ou hábitos adquiridos pelo Homem enquanto membro de uma sociedade" (Edward Tylor), ou seja, o conjunto de conhecimentos, práticas e produções materiais, espirituais ou artísticas aprendidos (logo, não inatos) que identificam e individualizam um determinado povo. Padrão cultural é o conjunto dos traços que definem uma cultura, como a língua, o sistema numérico, a gastronomia, os rituais e costumes, as artes, a hierarquia de valores e a definição de cada um deles, etc.

Por outro lado, a cultura pode ser vista como um conjunto de sistemas — de representação (engloba o que é utilizado para explicar os fenómenos, como mitos, religiões, Ciência, Ciência, CIÊNCIA!), de expressão (engloba tudo o que é usado para exprimir emoções, sentimentos ou pensamentos, como a língua, os gestos, as artes, a numeração, etc.), normativos (engloba tudo o que estabelece regras, como as leis, os códigos morais, a hierarquia de valores, etc.) e de acção (engloba as formas dos indivíduos de interagir entre si, ou seja, o modo de organização social e familiar, e agir em relação aos acontecimentos) — comuns a um conjunto de indivíduos.

Há vários processos através dos quais o indivíduo se torna membro de uma sociedade e parte de uma cultura:
Socialização é o processo de integração de um indivíduo numa sociedade para que este possa assimilar ou apreender o seu padrão cultural.
Modelação social é um termo utilizado para descrever o conjunto de transformações sofridas por um indivíduo ao nível dos seus comportamentos e valores provocadas pela sua convivência com a comunidade à qual pertence.
Enculturação é o processo pelo qual um indivíduo aprende os requerimentos da cultura na qual se encontra inserido e adopta o tipo de comportamentos considerados aceitáveis por esta e a sua escala de valores.

Evolução dos valores

Um outro problema que se coloca é a saber se estes são intemporais ou se só fazem sentido num determinado período histórico.

A teoria essencialista defende que os valores são imutáveis.
Pressupondo que os valores são entidades independentes dos objectos (teoria objectivista), esta teoria afirma que não se modificam com a alteração dos objectos em que se podem observar ou com os juízos que o Homem faz. Logo, são intemporais e transculturais (independentes das culturas).

A teoria relativista defende que os valores são relativos.
Esta teoria defende que os valores se modificam com a alteração dos objectos em que se podem observar ou com os juízos que o Homem faz.
Relativismo historicista, que defende que a definição dos valores se altera com o tempo e que, por isso, os valores não são imutáveis. É possível confirmá-lo verificando que, no século XV, um homem barrigudo era considerado atraente (significava que se alimentava bem, ou seja, que tinha poder e dinheiro), e que, hoje, esse ideal de beleza foi esquecido.
Relativismo cultural, que defende que o valor, visto ter definições diferentes para culturas diferentes, não é imutável. Por exemplo (outra vez), algumas culturas consideram justo que as mulheres não tenham os mesmos direitos que os homens e, para outras, isso não é justiça.
Relativismo subjectivista, que defende que o valor,  visto ter definições diferentes para indivíduos diferentes, não é imutável. É por este motivo que pessoas diferentes têm visões diferentes da arte, etc.

A natureza dos valores

Um dos primeiros problemas que se levanta a respeito dos valores é a sua natureza, isto é, se eles são apenas atributos de um objecto ou se existem para além dele.

A teoria subjectivista declara que são criações do Homem.
Não há, por isso, valores absolutos, pois o conceito e valor atribuído a cada valor é subjectivo, isto é, varia de indivíduo para indivíduo. Esta teoria está de acordo com a máxima "A beleza está nos olhos de quem a vê" e é comprovada pelas definições diferentes que cada cultura tem de valores como "beleza" (para algumas tribos, usar anéis ao pescoço para o alongar é belo, mas para os ocidentais, é atroz) ou justiça (algumas culturas consideram justo que as mulheres não tenham os mesmos direitos que os homens).

A teoria objectivista declara que são entidades independentes dos objectos e do Homem.
O Homem não pode, por isso, criá-los, mas apenas descobri-los. O mais antigo defensor desta posição foi Platão.

A posição intermédia ou conciliadora aponta para uma dupla dimensão.
Os valores são objectivos porque se referem a características que existem em objectos, mas subjectivos porque estes atributos só se tornam valores quando o Homem os valoriza (antes são "valores em potência").

O conceito de valor

Do latim valēre (“ser forte ou robusto”, “ter o valor de”), a palavra valor, na Axiologia, é usada para descrever uma característica de um objecto concreto (como uma mesa) ou abstracto (como uma acção) à qual o Homem dá importância. Os valores são organizados em hierarquias (= pautas) de valores, ou seja, listas de valores ordenados de acordo com a sua importância para o indivíduo que este utiliza, consciente ou inconscientemente, nas suas acções e reflexões.

Os valores têm polaridade positiva e negativa.
Se valor (pólo positivo) é, como foi previamente estabelecido, uma característica de um objecto que se considera boa ou útil, então o antivalor ou contra-valor (pólo negativo) será uma característica de um objecto que é vista pelo Homem como má ou inútil.

Os valores são condicionantes sociológicas da acção humana.
Os nossos valores são os "filtros", ou "lentes coloridas", através dos quais vemos o mundo que nos rodeia e que nos permitem apreciar a realidade, possibilitando a realização de juízos de valor. Uma vez que estes são aplicados aquando da deliberação (parte integrante da estrutura do acto voluntário) para escolher um modo de procedimento e excluir as restantes opções, podemos afirmar que os valores modelam o nosso pensamento e, por extensão, a nossa conduta e os motivos que a justificam. (= são condicionantes da acção humana)
A hierarquia de valores de uma cultura é um reflexo da mentalidade da sua população (que é determinada por factores históricos, geográficos e políticos). A pauta de valores de um indivíduo é, geralmente, bastante semelhante à da sua comunidade, porque o que um indivíduo valoriza e o modo como vê o mundo é ditado pela sua personalidade, que é influenciada pela sua herança genética e pelo contexto sociocultural em que este se encontra inserido. (= são condicionantes sociológicas da acção humana)

A vida é uma experiência axiológica.
Porque viver é agir e actuar e os nossos valores influenciam a nossa visão do mundo e as nossas acções.

5 de fevereiro de 2011

Juízos de facto e de valor

O juízo é, segundo a lógica aristotélica, um enunciado predicativo, ou seja, o estabelecimento de uma relação entre um objecto (sujeito) e um atributo ou propriedade (predicado). Dependendo do predicado, podemos classificar os juízos em dois tipos: juízo de facto ou juízo de valor.

O juízo de facto transmite dados factuais sobre o sujeito.
Este tipo de juízo é descritivo (pois descreve a qualidade do sujeito), objectivo (não depende da nossa percepção do objecto, mas das suas características, ou seja, de como ele é) e de cariz racional. Visto ser um facto, pode ser demonstrado com provas incontestáveis.
Por exemplo, ao dizermos "O cérebro das mulheres é mais activo do que o dos homens", estamos a constatar/descrever um facto cientificamente provado, pelo que é fácil demonstrá-lo: Le Figaro ou Jornal de Notícias.

O juízo de valor transmite uma opinião sobre o sujeito.
Este tipo de juízo é apreciativo (pois está relacionado com a nossa apreciação do sujeito), subjectivo (já que depende do ponto de vista de cada um), axiológico (já que depende da nossa hierarquia de valores) e de cariz emocional (deriva das nossas emoções face ao sujeito). Como não é um facto, não pode ser demonstrado, mas apenas argumentado
Por exemplo, ao dizermos "Comer carne é imoral", estamos a transmitir a nossa opinião sobre o acto de comer carne e as pessoas que o concretizam. Contudo, não podemos provar a nossa opinião, pelo que só podemos explicar argumentativamente porque pensamos desta forma (aliás, poderíamos pensar de outra, uma vez que isto é subjectivo).

O libertismo

"A liberdade designa a autonomia e a autodeterminação de um sujeito racional, qualificando e constituindo a condição de todas as acções voluntárias." O libertismo é, portanto, uma doutrina que anuncia o Homem como um ser livre e cujas acções são fruto da sua vontade (contrariamente ao determinismo, que as declara resultantes da reacção do ser humano às várias condicionantes que restringem a sua liberdade). Contudo, a liberdade só se alcança com acções (do mesmo modo que uma pessoa só é simpática quando exibe essa sua qualidade).

Ter liberdade física significa ter autonomia dos seus movimentos, sem a presença de obstáculos que a limitem.
Este tipo de liberdade está relacionada com a liberdade biológica e com a saúde, pois o doente (tal como o prisioneiro que se encontra limitado pelas paredes da cela) vê os seus movimentos serem restringidos pelas maleitas.

Ter liberdade psicológica é ter liberdade de pensamento.
Está relacionada com a liberdade moral, ou seja, com a capacidade para manter os seus valores e princípios intactos, independentemente da situação. É este o tipo de liberdade exibido por Guido em La vita è bella!, pois, embora esteja preso no campo de concentração, não se deixa coagir pelos soldados, mantendo-se livre de pensamento. O contrário sucede com o seu amigo médico, cuja liberdade psicológica é refém da sua obsessão com adivinhas.

Ter liberdade sociológica é ser livre num sentido social e político. (= não estar preso)
A liberdade é, pois, o reconhecimento das liberdades básicas individuais como direitos juridicamente assistidos.

O determinismo

"O determinismo é um princípio segundo a qual todo o fenómeno é condicionado por aqueles que o precedem ou acompanham." Aplicado à acção humana, isto significa que esta doutrina (o determinismo) defende que todos os actos e acções do Homem são influenciados por causas exteriores à vontade — as condicionantes.

O determinismo físico defende que tudo é regido pelas leis físicas.
São privilegiadas as condicionantes físicas (impostas pelas leis que regem o mundo físico), como a gravidade, a impulsão (Lei de Arquimedes), a duração dos dias e dos meses do ano, as marés, etc. A gravidade, por exemplo, é imposta ao Homem, obrigando-o a agir tomando-a em conta (quando atiramos uma bola contando com o efeito da gravidade sobre ela).

O determinismo biológico garante que o comportamento de qualquer ser vivo é determinado pela sua herança genética.
O nosso código genético controla não só a nossa constituição física/aparência como os nossos reflexos/instintos e a nossa personalidade (ver determinismo psicológico). Com efeito, estas condicionantes biológicas modelam o nosso comportamento e pensamento: o número de braços com que nascemos limita-nos os movimentos, o nosso instinto de sobrevivência impele-nos a procurar obter alimento, etc.

O determinismo psicológico aponta para a personalidade como a fonte da motivação humana.
A nossa personalidade (condicionante psicológica) é determinada pelos nossos genes (condicionante biológica) e pela educação que recebemos (condicionante sociocultural) e é o que faz variar os motivos que nos levam à acção (por exemplo: se formos maquiavélicos, teremos motivos maquiavélicos; se formos altruístas, teremos motivos altruístas).

O determinismo sociológico considera o Homem (e, consequentemente, as suas acções) um produto da cultura em que se desenvolve.
A educação que recebemos e o ambiente em que nos encontramos inseridos (e o seu passado histórico, de determina o seu desenvolvimento cultural) são condicionantes socioculturais e têm um grande impacto na nossa forma de pensamento: na verdade, até a linguagem, que nos foi imposta (não inventada por nós), é representativa de uma cultura e, ao usar-se, como veículo de transmissão de ideias, modela-as. A sociedade impele-nos (através da pressão social, sistemas judiciais, etc.), a viver e comportar-nos da forma dita "normal", influenciando, pois, a nossa conduta e assumindo (em conjunto com a nossa educação) um papel fulcral na modelação da nossa personalidade e no desenvolvimento do nosso sistema de valores.

A rede conceptual da acção

O acto voluntário ou acção processa-se em 4 momentos protagonizados pelo agente (que é o sujeito que concretiza a acção): concepção, deliberação, decisão e execução.

1. Concepção
A acção inicia-se no agente e na sua vontade, ou seja, a sua disposição para querer algo. É ela que desencadeia a intenção (querer concretizar a vontade), que, por sua vez obriga à definição de um objectivo (para que se deseja concretizar a vontade?) e de um motivo (porque sentimos esse desejo?). Definimos uma acção como "uma interferência (...) no normal decurso das coisas" e, estando determinado o que esperamos vir a alcançar, resta saber como alcançá-lo.

2. Deliberação
Este é um momento de reflexão, hesitação e ponderação sobre o modo de concretizar a acção. É necessário fazer juízos de valor (reflectir sobre as vantagens) de cada opção e pensar qual será a nossa preferência (juízo de preferência).

3. Decisão
O terceiro instante da acção é a escolha de um modo de procedimento com base na deliberação. É, simultaneamente, uma actividade electiva (pois é escolhida uma hipótese) e inibitória (porque são excluídas todas as outras).

4. Execução
Por fim, o agente executa a acção (do modo escolhido na decisão) seguindo uma ordem racional que o permita alcançar o seu fim (a conclusão) e a sua finalidade (o objectivo).

Os acontecimentos e a conduta humana

Acontecimentos são ocorrências cujas causas são exteriores ao Homem.
Deste modo, o ser humano não pode escolher o que lhe acontece.

A conduta humana engloba tudo o que o Homem faz: actos, acções e reacções.
Actos são movimentos involuntários que o Homem executa (actus hominus), de causalidade natural. Enquanto seres vivos, somos "programados" pela natureza e por milhões de anos de evolução para agirmos de certa forma: são os nossos reflexos inatos, como tremer de frio, fazer a digestão, etc.. Os actos podem ser reacções, como, por exemplo, decisões tomadas devido ao medo.
Acções são interferências conscientes, voluntárias, reflectidas, livres e intencionais de um ser humano no decurso normal das coisas que, sem a interferência, seguiriam um caminho diferente (actus humanis). A acção processa-se em 4 momentos (ver rede conceptual da acção) e pode ser baseada em 1) motivos centrados na finalidade da acção (causalidade teleológica), 2) motivos centrados na intenção e no propósito da acção ou 3) centrada no agente e no seu poder.

11 de dezembro de 2010

O método filosófico

Dimensão lógica do método filosófico: consiste numa reflexão crítica que se inicia com a problematização e resulta na definição de conceitos (conceptualização) e no discorrer destas ideias.
Dimensão linguística do método filosófico: discursar é a comunicação e argumentação de uma tese num debate ou discussão.

Filosofar é reflectir sobre as questões filosóficas com uma atitude filosófica, problematizando (porque é assim e não de outra forma?), conceptualizando (definir conceitos) e, depois, respondendo-lhes com argumentos racionais e válidos. (mais info: caminhos para o filosofar)

II - A irrelevância da Filosofia

A Ciência é melhor [cara de desprezo], porque é uma versão 2.0 da Filosofia: problematiza, reflecte, conceptualiza e cria espírito crítico, mas fá-lo tendo por base argumentos suportados por provas experimentais e resultados concretos.

As ideias filosóficas são só isso... ideias. Como pode haver múltiplas respostas para as questões filosóficas e nunca ninguém está de acordo, a Filosofia não passa de um monte de palavras das quais não resulta nada. Misturaram-se os ingredientes, mas o bolo não vai ao forno, por isso nunca cresce nem dá nada. (Esta analogia não é da minha autoria.)

A Alegoria da Caverna

A Alegoria da Caverna (ver alegoria) foi descrita por Sócrates e narrada por Platão, no seu livro "A República". Esta alegoria pinta um bonito quadro:

Há uma caverna, na qual estão vários homens virados na direcção contrária à da abertura e presos sem se poderem movimentar desde a nascença (nunca conheceram outro lugar). Esses são os prisioneiros. Cá fora, outros homens passeiam-se diante da abertura, projectando sombras que são avistadas pelo prisioneiros. Os referidos prisioneiros, ao avistar as sombras, pensarão, naturalmente, que elas eram seres reais.
      
Se alguém soltasse um dos prisioneiros, o forçasse a olhar para a luz e o curasse da sua ignorância (= explicasse que as sombras eram só imagens difusas dos seres e não os verdadeiros seres), o que aconteceria? A princípio, ele ficaria tão ofuscado pela luz que nem veria bem o que lhe diziam ser os "verdadeiros seres" e só gradualmente se habituaria àquela realidade.
     
Quando estivesse acostumado, sentir-se-ia feliz por já não ser ignorante. Ao lembrar-se dos seus antigos companheiros, sentiria pena deles. Mas, se ele voltasse à caverna e explicasse aos outros prisioneiros aquilo que tinha aprendido fora da caverna, eles não se deixariam ir e, provavelmente, matá-lo-iam. 
     
Porquê? Porque acreditavam cegamente que as sombras eram reais (isto é uma superstição, um dogma, uma verdade absoluta) e não permitiam que o antigo prisioneiro lhes questionasse as crenças. Com isto, Sócrates pretende explicar que só os filósofos deviam governar, pois eles não criariam um regime dogmático, mas sim um governo baseado na liberdade. (Estou a parafrasear o que a professora disse)

Metáforas implícitas:
  • A prisão é o mundo sensível, ou seja, o que sabemos através dos sentidos, pois para Sócrates, ser ignorante é tomar como certo o que os sentidos nos dizem. 
  • Prisioneiros somos todos nós, porque estamos agrilhoados pela ignorância. A subida ao mundo exterior é subir ao mundo inteligível (explicado pela razão, não pelos sentidos). 
  • A luz é o Bem e Sócrates defende que compreender o conceito do Bem é o máximo do conhecimento que se pode ter.

I - A relevância da Filosofia

A Filosofia foi a mãe de todo o pensamento racional.
Quando surgiu, a Filosofia era tanto um saber teórico como um saber experimental (só depois se tornou um saber meramente teórico). Foi o primeiro saber antidogmático, que se baseava na lógica e não se servia de preconceitos e superstições para justificar as suas teses. Foi o primeiro saber a exigir uma destruição dos conceitos até ali tidos como óbvios para reflectir sobre a vida com a mente "mais pura e límpida". Embora a Ciência também nos obrigue a ter espírito crítico e apele à autonomia mental, há que recordar que, sendo a Filosofia a origem da Ciência, foram os filósofos quem criou estas noções

A Filosofia ensina-nos a reflectir, problematizar, conceptualizar e argumentar.
Para filosofarmos, temos que adoptar uma atitude filosófica, o que significa que temos que problematizar (porque é que é assim e não de outra forma?), reflectir sobre as questões levantadas pela problematização, definir conceitos essenciais e argumentar de forma lógica. Aprender a argumentar de forma válida é essencial, não só para a Filosofia, mas também para outras áreas do conhecimento (até a Ciência, se bem que a argumentação científica se baseia em provas experimentais).

A Filosofia ensina-nos a interpretar a lógica de outros. (=interpretar textos)
Algo indispensável, seja em que área for.

A Filosofia é universal.
As perguntas filosóficas são radicais (vão até raiz do problema). As respostas filosóficas baseiam-se na razão e devem ser compreensíveis para todos.

A Filosofia preenche as lacunas da Ciência.
A Ciência não responde a tudo. A Ciência não distingue o certo do errado, por exemplo. Para isso, serve a Filosofia: para responder ao que não pode ser explicado pelas experiências científicas.

A Filosofia ajuda-nos a tomar decisões pessoais.
Sendo antropocêntrica, a Filosofia reflecte sobre o Homem e as suas preocupações. Se, perante um problema, adoptarmos uma atitude filosófica e reflectirmos sobre ele, podemos chegar a uma conclusão sobre o que devemos fazer (qual a atitude correcta; o que nos fará felizes -- busca da felicidade).

A Filosofia impede a submissão ao poder.
...porque problematiza e questiona, promovendo a independência de pensamento. Então, a Filosofia luta contra a autocracia, em que as regras são ditadas por um só indivíduo e não podem ser questionadas.

A história da Filosofia

As temáticas abordadas pelos filósofos dependem do enquadramento histórico. Uma vez que a Filosofia é antropocêntrica, esta e as questões filosóficas evoluíram ao longo dos tempos para se adaptarem às preocupações humanas.

1. Antiguidade VII a. C. a IV d. C.
A Filosofia nasce na Grécia, em VII a.C., quando surgem homens a tentar explicar a natureza com a natureza. Estavam, portanto, a rejeitar a ideia de que os fenómenos naturais e a criação do ser eram resultado da intervenção divina. Se não tinham sido os deuses, como teria sido criado o Universo e o Ser? As temáticas abordadas eram, principalmente, ontológicas (ver ontologia), cosmológicas (ver cosmos) e metafísicas (ver metafísíca).
A Filosofia Antiga divide-se em vários períodos. Enunciemos três: filosofia pré-socrática, de VII a.C. a V a.C.; filosofia ateniense ou época áurea, de V a.C. a IV a.C. (Platão, Sócrates, Aristóteles): filosofia helenística, de IV a. C. a III a. C..

2. Idade Média IV d. C. a XVI d. C.
Durante este período, a Igreja Católica dominou de forma quase absoluta a mentalidade europeia. Os textos filosóficos desta época abordam temáticas teológicas (ver teologia) e recorrem, muitas vezes, a argumentos retirados da Bíblia (saber livresco). A Filosofia abandona a sua componente experimental, passando a ser um saber teórico, tal como defendido por Sócrates.

3. Renascimento  XVI d. C. a XVII d. C.
Nestes séculos, retomam-se as ideias gregas e cresce o entusiasmo pela Arte e pela Ciência. As questões são ontológicas, metafísicas, estéticas (ver estética) e... teológicas (porque, no século XVI, Martinho Lutero inicia a Reforma Protestante, levando a uma forte repressão católica).

4. Idade Moderna XVII d. C. a XIX d. C.
A Ciência torna-se independente da Filosofia, distinguindo-se por ser um saber experimental (a Filosofia é reflexiva). A teoria heliocêntrica é levada a sério com Galileu (temática epistemológica) e há, novamente, uma forte repressão católica (temática teológica).

5. Idade Contemporânea XIX d. C. até hoje
Esta época começa com a Revolução Industrial e o rápido progresso da Ciência. As temáticas abordadas são, principalmente, epistemológicas e éticas (relativas ao uso de certas tecnologias controversas).

25 de outubro de 2010

Dicionário filosófico

Para dúvidas no vocabulário, consultar a página do dicionário filosófico (link).

Atitude filosófica

A atitude filosófica é uma atitude anti-dogmática.
Para compreender isto, é preciso saber que um dogma é uma verdade absoluta, tida como inquestionável. A atitude filosófica é uma atitude de ataque a estas verdades absolutas, de destruição do óbvio, de ruptura com o senso comum e de distanciamento do quotidiano. Só assim podemos ver as coisas por uma perspectiva diferente (uma visão mais pura) e examinar criticamente o que está à nossa volta, pensando por nós mesmos, sem sermos influenciados pela opinião dos outros.

A atitude filosófica é uma atitude humilde.
Ao reflectirmos sobre as questões filosóficas, apercebemo-nos de que são de difícil resposta. Isto obriga-nos a admitir a nossa ignorância e a sermos mais humildes.

A atitude filosófica implica uma mente aberta.
A humildade necessária para a reflexão filosófica significa um reconhecimento de que podemos estar enganados e, por isso, devemos ter uma mente aberta para as opiniões bem-fundamentadas dos outros. (mas só para as bem-fundamentadas, não para os preconceitos!)

É importante ter uma atitude filosófica e filosofar porque nos ajuda a 1) ter autonomia mental, 2) ser humildes, 3) manter uma mente aberta a opiniões bem-fundamentadas.